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E quando a inspiração não vem?


Foto: Yasmim Cavalcanti


Por Yasmim Cavalcanti


O despertador toca pela manhã. Seis horas, mas posso colocar mais cinco minutos de soneca. Mas sabe como o tempo funciona nessa soneca, não é mesmo? Cinco minutos se passam e quando abro os olhos já são seis e meia preciso levantar correndo para me arrumar e tomar café.



No instante em que faço o café, me sinto mais conectada ao presente. Uma pausa de minutos para apreciar aquele cheiro que vai invadindo a cozinha e parece ir até o corredor para despertar o prédio inteiro. Um dos poucos momentos em que não sou tomada por notificações dos aplicativos do celular. E quando o pego para ver algo na sua tela brilhante, porque é inevitável não poder ficar desconectada do mundo virtual, o tempo escorre entre os meus dedos e passa ainda mais despercebido sem nada ter realmente mudado.



Passo pela janela, observo os carros antes do engarrafamento (o que me lembra que preciso sair para não me atrasar) e vejo um gatinho brincando entre as garrafas vazias de cerveja deixadas pelo restaurante para serem retiradas pelo caminhão de lixo próximo à árvore. Mesmo para lá e para cá, imagino que o bichinho esteja com frio ou com sede. Sei que tenho uma vizinha que sempre coloca comida para os gatos e cachorros ao redor, mas mesmo assim isso me incomoda. Eu mesma e minha mãe também ajudamos quando vemos eles assim. Queria poder ajudar mais de alguma forma, não deixar o gato ali. E como uma pessoa pode ser capaz de abandonar tais animais?



No fluxo desse pensamento, me pego fazendo a seguinte pergunta: será que as pessoas realmente olham para o seu redor e se comovem também com as coisas que estão além de seu alcance? Digo do gato ao ser humano que mora na rua e todos os dias são ignorados por nós como sociedade. Fome é uma das piores formas de violência. Todos deveriam ter acesso a alimento e a um lugar para descansar. Estar também em frente de uma janela, tomando esse café, tendo a oportunidade de viver e não apenas sobreviver.



Infelizmente, a comida tem se tornado um acessório de luxo, um produto de que só quem possui dinheiro pode usufruir. A moradia, que também é um direito, foi transformada em apenas uma mercadoria. Ainda mais nos últimos anos que se passaram.



Lembro que durante a pandemia de Covid-19, a maioria pensava que nos tornaríamos seres humanos melhores, que passaríamos a valorizar atos simples do cotidiano, valorizar o abraço e esse cuidado com o próximo. Mas o que percebo são pessoas em suas bolhas e cada vez mais mediadas por uma interface digital. São muitas camadas para processar e debater logo pela manhã.



Entre pensamentos e a hora que passa correndo no relógio, finalmente me preparo para sair. No ônibus, entra uma garotinha com a sua mãe e ela logo diz que quer se sentar na cadeira alta do coletivo. Tá aí uma coisa que me evoca uma lembrança boa, a leveza que eu precisava para ter certa esperança em nós mesmos como um todo.



Quando eu era pequena, também costuma querer só o lugar alto. Chegava a querer que as pessoas se levantassem para eu poder me sentar. Olha o que eu inventava! E o que quero trazer é esse encantamento do olhar que descobre tudo a sua volta, querer estar na cadeira alta para poder ver de perto esse mundo desconhecido.



Não perder o encantamento pelo mundo também pode ser uma forma de salvá-lo. Salvar as pessoas que estão aqui sendo massacradas por um sistema que só as explora. Talvez não possa colocar a culpa só no egoísmo em não se olhar ao redor, mas nesse sistema que não deixa a gente apreciar uma vista ou nos faz nos sentirmos culpados por não estarmos sendo úteis vinte e quatro horas, queremos consumir para preencher o vazio da falta do sentido humano que deixamos de dar às coisas.



Enquanto via ela se divertir e quando já estava sem inspiração para escrever durante dias, aquela cena me renovou e me fez estar aqui novamente. Não queria trazer dados, apenas refletir. Talvez tudo o que precisamos seja sentar-nos nessa cadeira alta e voltar a sonhar como crianças. Elas nos ensinam e muito. Nem tudo é óbvio e que a mudança pode acontecer. Que a gente comece olhando para fora da bolha.


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