Corpos que atravessam oceanos: a potência queer na Ilha da Reunião chega ao Rio
- Comunica Uerj
- há 22 horas
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Por Beatriz Barbiere
Créditos: Divulgação

No Flamengo, o Futuros – Arte e Tecnologia se torna ponto de encontro entre arte, memória e descolonização com a chegada de Kwir Nou Éxist: Nós Queer Existimos, projeto dos artistas Raya Martigny e Édouard Richard. A exposição reúne cerca de 80 imagens que retratam a comunidade LGBTQIAPN+ e crioula — termo que, naquele território, não se refere a uma origem étnica fixa, mas a uma identidade nascida da mistura forçada de povos africanos, malgaxes, indianos e europeus sob o regime colonial francês — da Ilha da Reunião, território francês no Oceano Índico ainda atravessado por heranças coloniais. Depois de circular por Paris, incluindo o Museu do Louvre, a mostra desembarca no Brasil como parte da Temporada Brasil–França 2025, abrindo espaço para refletir sobre quem tem o direito de ser visto e de se representar. A exposição está em cartaz no Futuros, na R. Dois de Dezembro, 63 - Flamengo, até 9 de novembro com entrada gratuita.
Mais do que uma exposição, Nós Queer Existimos é um manifesto visual sobre dignidade, corpo e pertencimento. As imagens de Raya e Édouard nascem de um processo de criação com as pessoas retratadas, que participaram da escolha de locações, figurinos e narrativas. As lentes de Raya e Édouard capturam uma juventude queer e crioula que se reconhece, celebra e reivindica espaço em uma ilha onde o francês ainda é a língua do poder, mas o crioulo se afirma como língua do afeto e da resistência. O próprio título — “Kwir”, palavra recente no vocabulário crioulo — marca esse gesto político de apropriação: existir em crioulo, existir em corpo, existir à revelia do colonialismo.
A trajetória de Raya Martigny é o fio condutor desse movimento. Aos 16 anos, ela deixou a Reunião em busca de liberdade e reconhecimento em Paris, como tantas pessoas LGBTQIAPN+ que precisam migrar para poder viver. Ela conheceu o fotógrafo e documentarista Édouard Richard e estreitou uma relação que transbordou do afeto para a arte. Oito anos depois, Raya, que também é modelo e atriz, voltou com Édouard para Ilha da Reunião e encontrou uma geração diferente: autoafirmativa, politizada e visível.
“Quero mostrar a essa juventude que ela tem valor. Que não é preciso necessariamente partir para se construir. O importante é ter escolha — de ficar ou ir — mas com consciência, com confiança. Esse projeto nasceu desse desejo. Juntes, eu e meu parceiro e fotógrafo, Édouard, construímos um trabalho de memória e celebração através da fotografia e de arquivos, desde os anos 1980 até hoje", conta Raya. Diante daquele material vivo, Raya e Édouard fizeram da existência queer uma afirmação visual e artística que resultou na exposição.
As imagens expostas no Futuros falam sobre o que o olhar europeu sempre tentou controlar: a cor da pele, o desejo, a fé, o pertencimento. Elas revelam as cicatrizes do colonialismo, mas também a beleza que nasce da resistência. Porque, assim como a Ilha da Reunião — africana na geografia, mas europeia nos documentos —, o Brasil também carrega o peso e as contradições de uma história colonial que ainda molda quem tem o direito de existir plenamente.
É nesse espelhamento que a mostra se torna também sobre nós. Afinal, os corpos queer brasileiros conhecem bem o que significa resistir em meio às violências estruturais da branquitude, da heteronormatividade e do racismo. Como as pessoas retratadas por Raya e Édouard, seguimos transformando dor em linguagem, ausência em presença, silenciamento em imagem. Em ambos os territórios, a arte surge como ato de libertação e como documento daquilo que o poder tenta apagar.
Entre oceanos e câmeras, corpos e memórias, Kwir Nou Éxist nos lembra que existir é também contar a própria história. Cada fotografia é um gesto de afirmação: uma recusa ao silêncio imposto por séculos de colonialismo, racismo e normatividade. Em crioulo ou em português, a mensagem ecoa clara: nós queer existimos. Entre cores, olhares e corpos, a exposição reafirma o que tantas vezes é gritado nas ruas: nós existimos, resistimos e seguimos criando mundos.
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