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Carnaval fora de época: a alegria e a crítica nas ruas do Rio

  • Foto do escritor: Comunica Uerj
    Comunica Uerj
  • 23 de set.
  • 3 min de leitura

Por: Beatriz Barbiere



Reprodução: Marcelo Valle (@macelovallefotografia)

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Na sexta-feira, 12 de setembro, o Centro do Rio de Janeiro pulsava como em pleno carnaval. Na Cinelândia, entre sambas, blocos de rua e cortejos, a alegria se misturava ao peso da história. Pela primeira vez, uma tentativa de golpe de Estado no Brasil foi julgada e condenada. Horas antes, em Brasília, o Supremo Tribunal Federal sentenciara o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete réus, entre militares e civis eram, todos, integrantes do governo, pela tentativa de golpe de 8 de janeiro. O peso dessa decisão encontrou nas ruas seu contraponto em batuques, risos e na força da cultura popular.


Entre as manifestações destacou-se a performance da Escola de Teatro Popular (ETP). Um tubarão gigantesco foi colocado atrás das grades, cercado por peixes que avançavam em cardume. Para a atriz Haiz Cena, que participou da performance, esse gesto visual apresentou ‘uma nova camada de compreensão’ do momento: “Se a maioria das falas estava focada na figura do Bolsonaro ou de outros líderes, a ETP deslocou esse olhar, que é sair um pouco desse foco do indivíduo. O tubarão era uma figura forte, mas o cardume lembrava a força da coletividade. É a possibilidade de pensarmos o poder da coletividade, o poder desse povo que resiste desde que Bolsonaro se elegeu.”


Esse gesto artístico sintetiza algo essencial sobre cultura e política no Brasil: nossa tendência a narrar os conflitos de maneira alegórica, popular, acessível. O tubarão preso não é só uma metáfora visual; é também uma pedagogia. Mostra, de forma simples, que há forças maiores do que o indivíduo autoritário e que o poder pode ser reinventado pela coletividade.


João Gabriel, estudante de Jornalismo da Uerj, viveu a manifestação como catarse coletiva: “Foi uma grande festa, digna de carnaval. Tinha sambas acontecendo ao mesmo tempo; blocos se encontrando; artistas circenses; músicos de diferentes movimentos… Era um grito preso há muito tempo, finalmente solto. Só o carnaval poderia proporcionar esse espaço para a gente extravasar essa catarse.”


Não se trata de fuga da realidade, como às vezes acusam, mas do contrário: é a forma mais real de enfrentar a política brasileira, com música, dança e humor como armas legítimas. Julian Boal, pesquisador e diretor de teatro, filho de Augusto Boal — criador do Teatro do Oprimido — chamou atenção para a ambiguidade do momento: “Foi uma celebração intensa e merecida, mas insuficiente. Bolsonaro deveria responder também pelo crime de genocídio na pandemia. Ainda assim, é importante não perder a alegria de estar nas ruas; mesmo que nem sempre encontremos as formas mais elaboradas de expressar. O que a ETP fez, por exemplo, foi ressignificar símbolos já existentes para afirmar presença.”


A fala de Julian ecoa um dilema importante. Como equilibrar festa e crítica? O risco de transformar a política apenas em carnaval existe — e não é pequeno. Boal também notou a ausência de maior participação popular: “Quando pensamos no que representou a tentativa de golpe, e no genocida que foi Bolsonaro, era para termos muito mais gente nas ruas. Fica a pergunta: onde estavam as pessoas que não estavam ali?”. Essa pergunta não é só sobre números de público; é sobre memória e engajamento.


O jornalista Thiago Minete, que também festejou após a condenação da trama golpista, trouxe outro ponto: a potência de se engajar politicamente por meio da ludicidade. Ele vê nessa mistura de política e festa uma tradição brasileira que precisa ser mantida: “É uma forma lúdica de engajar, que talvez não engajaria de outra maneira. Arte e cultura têm esse papel fundamental: levar reflexão e crítica de um jeito acessível, que toca as pessoas.”


Entre sambas, faixas e peixes, as ruas do Rio lembraram que a cultura popular é mais do que celebração: é memória, resistência e martelo de transformação. Mas a insatisfação também ecoou. Vinte e sete anos e três meses de condenação parecem pouco diante do que Bolsonaro representou — e do que ainda não foi julgado. Como lembrou Haiz, se comemorar a prisão com arte é uma resposta, “não pode ser um espelho para refletir, mas um martelo para transformar.”


Foi ouvindo artistas como Haiz, pesquisadores como Julian, jornalistas como Thiago e cidadãos comuns como João que essa coluna pôde compor uma síntese: a rua é, ao mesmo tempo, palco e ensaio do desejo popular. Isso é poder. A força da cultura não está apenas em retratar o presente, mas em martelar possibilidades de futuro. No fim, ficou a imagem do cardume encarando o tubarão enjaulado. A expectativa coletiva é clara: que esses tubarões, um a um, finalmente parem de nadar.



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